segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sílvia III - As Mulheres da Minha Terra




Sílvia decidiu fazer o que todos lhe aconselharam durante mais de dezasseis anos: re-conquistar o marido, re-aproximá-lo com cuidado, re-enchê-lo de atenção e mimos, e falar baixinho, o mais que pudesse, para que ele sempre perguntasse, não ouvindo, e ela repetisse - agora com permissão - o que lhe queria dizer. Dizem que assim, o homem faz todas as vontades, fica manso e terno com a mulher, e o seu ímpeto agressivo vai reduzindo gradualmente. Teve exemplo de casos de outras mulheres que conseguiram com perícia domesticar os maridos infiéis e violentos. Mas no seu caso, segundo instruções da curandeira, para que tudo corresse de feição, ela tinha de cumprir um plano de auto-cura, em que invocava que o perdoava, pelo menos 7 vezes ao dia, até interiorizar o perdão e começar a praticá-lo. Esse plano passava também por afastar os maus pensamentos e os desejos da eliminação física do homem.

- "Isso é coisa do Diabo, mulher!" - disse-lhe a senhora - "Isso de querer matar o pai dos seus filhos. Você tem de perdoar e voltar a ser uma pessoa normal."

- "Pessoa normal" - repetia Sílvia mentalmente pelo caminho - "Pessoa normal, eu..." - colocava desdém na expressão - "Eu deixei de ser uma pessoa normal e quem precisa de cura sou eu... que grande ironia!"

Via os filhos com mais idade, e via-se a si própria com menos energia para mudar de vida. Tudo o que tentara fazer para afastar-se do casamento não dera resultado, e depois de vinte vezes humilhar-se ao regressar a casa com os filhos numa mão e a vergonha na outra, era tempo de ter juízo.

Começou por escrever em folhas azuis as mágoas por ordem alfabética, e depois comia um a um os pedaços de papel, engolindo lentamente as palavras salgadas que tinha escrito. Enquanto os comia, rezava e levantava as mãos para o céu pedindo libertação. "Eu perdoo-te!", gritava, "Eu perdoo-te, meu marido". E depois da sessão de auto-cura, tomava banho de água salgada e nesse dia aceitava fazer amor com o marido. Ele ficava surpreso e tenso perante a iniciativa da mulher e na maioria das vezes tentava fugir. Mas a pele de Sílvia parecia-lhe agora a mais perfeita que conhecera, a sua boca era carnuda e desenhada parecendo saltar da face para beijá-lo e ela, sem saber como, agora sabia como seduzi-lo. O marido sentia medo, muito medo que de repente ela pudesse feri-lo.

- "Já te disse que te perdoo, meu marido" - sussurava-lhe ao ouvido - "Descontrai..."
Ele perdia a respiração e num voto de confiança cega aceitava fazer amor, como sempre aceitou fazer amor, apesar de todos os maus motivos, com outras mulheres.
Sílvia levantava as mãos ao céu enquanto sentia prazer e a sensação de poder fazia-a rir-se às gargalhadas quando atingisse o climax. O marido ficava inquieto e embaraçado, e começava a desesperar, sem saber como lidar com esta nova mulher. Tinha-lhe feito coisas das quais se sentia arrependido mas sentia que a mulher tinha mudado o suficiente para não conseguir mesmo reconhecê-la. Isso por um lado excitava-o, mas por outro, sentia-se cada vez mais inseguro junto dela.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Sílvia II - As Mulheres da Minha Terra



Sílvia ouvia os risos finos e as gargalhadas bêbadas do seu marido e outra mulher e recordou-se do tempo em que se sentia culpada por não ser suficientemente boa. Em que foi perdendo a auto-estima, e pouco a pouco, os espelhos foram sendo substituídos por quadros que comprava baratos a um primo pintor, traços de tinta preta e vermelha. Certo dia, o marido confessou estar farto dos quadros e num dos vários ataques de fúria, arrancou-os das paredes e deitou-os na rua para quem quisesse. As paredes da casa de Sílvia ficaram despidas, e ela sentiu-se fria e desprotegida.

Ele não é assim, repetia. Ele era tão bom, recordava. Ele não está bem, dizia. Ele é bom pai, diziam-lhe...
E o tempo passou áspero pelos seus sentimentos. Por vezes parava para ver os filhos brincarem e perguntava-se se os amava, e como seria a sua vida longe de todos. Depois deitava-se e enquanto sofria, perguntava a Deus, que tipo de gente seria, de onde tinha vindo, para não ser capaz de amar e ser amada por ninguém.

Estava decidida a afastar o seu marido da sua vida e da dos seus filhos, e sabia que só havia uma saída, depois de tantas outras tentadas ao longo dos anos. Matá-lo. E pensar em matá-lo dava-lhe cada vez mais paz interior, mais confiança e uma súbita e repentina energia. Por isso ouvi-lo a entregar-se a outra mulher no anexo da sua própria casa começou a não magoá-la, a não destruí-la. Tinham decidido aproveitar o amplo espaço do quintal para fazer um anexo e alugar, para conseguirem ter mais dinheiro, mas o espaço consumiu-lhes todas a economias e nunca chegou a servir para o que foi criado. Ao invés disso, o marido trazia mulheres que ficavam lá um mês inteiro, por vezes dois ou três, e não pagavam. Pessoas que conviviam com ela e os seus filhos, que sentiam a sua dor. Só passado algum tempo Sílvia se apercebeu que eram afinal pessoas com quem o marido dormia e dava guarida, até se fartar e encontrar outras.

- "Mas o teu marido é macho, hein!" - dizia-lhe em crioulo uma prima - "Dentro da tua própria casa? Sufri. Sofre. Há-de lhe passar".

Sílvia saiu do quarto e dirigiu-se ao anexo. Perdeu o medo, e quando se perde o medo, perde-se também o coração.

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Iana III - O Desejo



Iana caminhou devagar enfrentando as luzes que tentavam encandear o seu brilho. Não sabia se vinham dos olhares curiosos que a consumiam, ou do colorido pisca-pisca da discoteca. Enquanto andava, tentava mentalmente controlar o seu salto alto. Era tão alto que evitava olhar para o chão. Insegurança? talvez. Ao fundo, o seu amigo esperava-a, vestido tal e qual lhe dissera: calças e casaco de um azul claro e às riscas brancas... e uma rosa na mão. Quando a viu, os seus olhos acenderam. Era mais bonita e vistosa do que lhe tinham dito. Iana teve o sentimento contrário, o homem era menos interessante do que pensava. Era demasiado gordo, demasiado redondo e com um ar muito espalhafatoso. Gostava de homens tranquilos, quase desinteressantes, que ela pudesse seduzir com cuidado, mas todos tinham uma coisa em comum, que era uma secura no corpo e um olhar terno, quase paternal. Loucuras, ter-lhe-ia dito a mãe. Um homem bom não faz o que te fazem.

Procurando apagar a mãe da sua memória, começou a rebolar a bunda gigante de forma provocante enquanto procurava com olhares tímidos e falsos, alvos na plateia... mas nada. A frustração começava a tomar lugar. Em Bissau os homens eram fáceis, previsíveis e dominadores. Tinha tido algumas experiências, a maioria pouco excitantes, e a cada encontro com desconhecidos ficava mais nervosa. A regra continuava a mesma, beijos e carícias nos seios para ela, beijos e carícias que não nos seios para ele, e nada de outras coisas.

- "Minha querida!" - Levantou-se com pompa e indicou-lhe uma cadeira, enquanto controlava orgulhoso a atitude de outros homens presentes no espaço - "Pensei que já não viesses..." - colocou o braço atrás de Iana, aproximando-a - "Hoje vamo-nos divertir muito!"
Iana estremeceu de um súbito frio e sentiu arrependimento e medo.
- "Eu disse que vinha, por isso vim. Cumpro sempre a minha palavra. Espero que tu também!" - retorquiu.
- "Hehehehehe! Não tenhas medo, querida!"- riu-se nervoso e acendeu um cigarro - "Uma tipa que faz o que fazes não tem de ter medo".

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Sílvia I - As Mulheres da Minha Terra



- "Lava bem o chão da tua casa, mas nunca deixes que o teu marido te veja a fazê-lo. Nunca lhe dês a oportunidade de te sentir pequena, menor, subserviente e suja, limpando o local que pisa e para onde sacode todas as poeiras. Este é o problema! Tu deste-lhe essa visão! Acorda cedo, minha filha, e lava o chão da tua casa. Quando o teu marido despertar, a casa parecerá fresca, brilhante e aconchegante. O melhor sítio do mundo para se viver. Serve-lhe olhando-lhe nos olhos, provocadora, e não te sentes até ele dar a terceira colherada, pois pode ser que lhe falte alguma coisa, que tu rapidamente providenciarás. Faz-lhe bonito e repete-lhe isso todos os domingos, não mais do que isso, para que sinta que lhe analisas e que valorizas o seu bom comportamento. Quando saíres de casa, lembra-te de que ele está ao teu lado, mesmo que não esteja, e não faças nada que o envergonhe. Não lhe apresentes toda a gente que conheces, para que não te veja vulgar. Raramente fales da tua família de origem, provando que ele é a tua prioridade, o teu único interesse e preocupação. Não lhe incomodes com os assuntos dos filhos. Os filhos são assuntos de mulheres. Trata bem a sua família, e sempre que não gostares do que ouvires, responde "não percebi" e sorri. Conquista a sua irmã, porque pior do que a sogra, é a cunhada ciumenta, mas não lhe faças confidente se quiseres que o casamento dure depois do segundo filho. Fala baixo quando quiseres discutir, de modo a que o teu marido se aproxime de ti para poder escutar-te, e nunca lhe acuses, nem digas nada que o fará pensar muito... Sobre aquele assunto... aquele... entre quatro paredes vale tudo. Mesmo que saibas muito, deixa ficar a ideia de que tudo te está a ser ensinado por ele..."

- "Estou cansada tia. Doí-me a cabeça e o coração..."
- "Sílvia, minha filha, isto que estás a viver todas nós já vivemos. Vidas de tensão permanente... "
- "Obrigado tia, obrigado pelos seus conselhos..." - respondeu com pressa e quis fugir dali.

Pegou na sua mala e lentamente calçou os sapatos antes de sair da casa, para que a tia não notasse o seu desapontamento. Coberta de beijos da anciã, sentiu-se abençoada e aliviada com o que ouvira. Aliviada, não por ter ouvido novidades sobre a solução para a violência de que era vítima, mas por ter a certeza de que aquele não era o caminho. O que lhe sugeriam era impossível de realizar. Como limpar com amor o chão de uma casa onde caíam as suas lágrimas todo o tempo? E acordar cedo se na maioria das noites não dormia. Como fingir que ele estava sempre ao seu lado, mesmo quando não estivesse, se o que mais queria era vê-lo longe da sua vida?

Tentara fugir diversas vezes, algumas levando os filhos e outras procurando sozinha as pegadas para o caminho da paz, mas nada. Quando as crianças estavam por perto, poucas vezes aguentou mais de cinco dias longe de casa, porque ninguém está disposto a alimentar bocas famintas de amor. Quando estava sozinha, o vazio no peito e o peso na consciência faziam-na regressar a casa, em média, três semanas depois.

- "Mas porque te bate desta forma?!" - pergunta retórica da vizinha quando a acudia - "O meu marido nunca me bate na cara. Graças a Deus!".
- "Hoje é o último dia, garanto-te! Hoje é o último dia" - balbuciava com dificuldade enquanto movia o corpo para trás e para frente procurando equilíbrio e abraçava-se a si própria num vaivém de ideias de indignação.
- "O que vais fazer? Diz-me!"
- "Vou matá-lo!"

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Mulher na Música Guineense - Entre a Dor, o Amor e a Esperança!











Dia da Mulher Guineense - Considerações

Neste dia da celebração da Mulher Guineense na construção da nação, costumamos recordar as nossas heroínas da luta de libertação: Carmem Pereira, Titina Silá e Francisca Pereira (pela ordem da fotografia).



Em 1973 a Guiné perdeu o seu líder Amílcar Cabral e a combatente Titina Sila. O mestre-ideólogo e a discípula da insubordinação colonial. Perdeu mais pessoas, mas destacamos estes dois, pela sua importância nacional e internacional (Amílcar) e reconhecimento nacional (Titina).



Celebra-se hoje exactamente o dia da morte de Titina Sila. A 30 de Janeiro, consta que atravessava o rio Farim para assistir às cerimónias fúnebres de Cabral quando foi assassinada.

Certo dia, para um pequeno trabalho, estive a procurar nos livros e depoimentos de companheiros de luta de Titina Sila, mais elementos sobre a sua vida que me permitissem conhecê-la melhor e explicar a sua importância em todo o processo de luta armada, e para meu espanto, encontrei poucas descrições sobre a sua importância efectiva, sobre a sua vida e a sua personalidade, mas imensas referências rápidas à sua pessoa. Por isso falo de "reconhecimento" e não de "importância". Ou serão os dois sinónimos? Talvez.
Para celebrarmos um herói, temos de conhecê-lo, ter exemplos, ter a contextualização da sua acção, valorizar o seu trabalho e não fazer apenas ocas referências à sua pessoa. Urge, por isso, uma obra que possa contar a história de Titina Sila: a sua biografia. Conhecer para podermos valorizar e não esquecer nunca o seu contributo (e a de outras mulheres guineenses) e a sua participação no processo de edificação de um estado independente, e não meras referências que não nos contam a sua importância através de factos, de acontecimentos, de exemplos da sua vida e do seu trabalho.



Como historiadora, não poderia estar mais de acordo com a necessidade de valorização das mulheres na história da Guiné-Bissau, opondo-me à sua secundarização e invisibilidade nos primeiros planos das narrativas, a não ser que esta tenha sido a realidade histórica, mas mesmo que tenha sido, saber o porquê desse facto. Daqui a cinquenta anos, que saberemos sobre Titina Sila, quando desaparecerem os seus companheiros e os familiares que conviveram com ela?

Num país como a Guiné, em que as referências positivas de verdadeiros heróis nacionais carecem de protagonistas, precisamos hoje em dia de ressalvar o património das lutas ideológicas, aquelas que trazem sonhos como primeira letra do alfabeto do desenvolvimento. Sim, heróis nacionais serão sempre aqueles que tiverem sonhos para o país, que lutaram sem pedir trocos, para uma causa que beneficiará muitos outros. São aqueles que perderam os umbigos em prol de uma causa maior.

Voltando às mulheres. Para celebrarmos, é bom reflectirmos sobre o momento presente, porque o passado nós já não podemos mudar nem transformar. E percorrendo a nossa história recente até à actualidade, podemos perguntar-nos: "Que progressos foram feitos em prol da igualdade de género no país?" E reflectir sobre os seguintes items:
- Pobreza e acesso aos recursos materiais, económicos e à terra;
- Instabilidade Política e social e Violência doméstica;
- Casamentos forçados e mutilação genital feminina;
- Acesso aos cuidados de saúde e à educação;
- Participação política e cidadania;
- Etc.

Para nós, mulheres guineense, a luta ainda não terminou!

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Auto-entrevista



Faço hoje o que talvez devesse ter feito logo no primeiro post: apresentar-me e ao Blog.
Não, não se trata de uma experiência esquizofrénica de uma entrevista feita a mim própria :), mas das principais questões que me foram colocadas por diferentes pessoas sobre o Blog e que resolvi compilar.

*Porquê o título em kriol "Nha Literatu?"
- Em primeiro lugar porque sou guineense e gosto muito de escrever em kriol, apesar de sentir por vezes que não domino a língua, nem a sua escrita como gostaria. Em segundo lugar, quis brincar um pouco com as palavras retrato (ritratu no Kriol da Guiné. E litratu, como dizem os que não conseguem dizer ritratu... risos) e com a palavra literatura e literato. Posso dizer que este Blog é um ponto de encontro de histórias de vida, fictícias e baseadas em histórias reais sobre mulheres. Um retrato de letras de diferentes, mas muito interessantes, mundos no feminino.
Outra forma de contar histórias são também as fotografias, a música, a pintura, etc. Por isso sempre que possível vou intercalar as minhas estórias com outras contadas por artistas de diferentes áreas.

*Porquê mulheres?
- Porque falar de mulheres é falar de todo o mundo! Dos homens, das crianças, das famílias, da sociedade, das leis, da natureza, da ciência, etc. Pela sua própria natureza, o mundo feminino é um mundo inclusivo, por isso não sinto que esteja a excluir os homens...

*De que tipo de histórias vai tratar?
- Gosto particularmente de histórias de pessoas comuns. As minhas personagens não são heroínas...
Estará também sempre presente uma mensagem aos leitores, no sentido de que nós não somos só o que pensamos que somos. Nós também somos o que nos rodeia. Por exemplo, mesmo se não nos considerarmos violentos, mas vivermos num ambiente pessoal, social e político marcado pela normalização da violência, isso diz muito sobre nós...

* Podemos considerar este blog, um blog feminista?
- Claro! É um blog de uma feminista.